
Celular na mão – o mundo à sua vista –, mas cada dia mais distante dos mais próximos. Esse é o cenário vivido pelo ser humano hoje, e, nesse contexto, a que tudo indica irreversível, muitos ainda sentem saudade da grandiosa feira livre da Cidade Princesa que, mesmo ‘sufocada’ no Centro de Abastecimento há quase 50 anos, como um polvo, estende seus tentáculos em várias direções e continua respirando forte.
Passadas quase cinco décadas, ou exatos 48 anos, ainda há quem demonstre saudade, quando nada lembre, da famosa feira livre de Feira de Santana, que chegou a ser considerada a maior do gênero no país e a se constituir na maior âncora do movimento turístico local, apoiada pela feira do gado que, embora em local distinto, associava-se de forma valiosa na composição da economia do município. Não há registros precisos, mas pode-se dizer que aquela monumental feira livre, extinta em 1977 com a construção do Centro de Abastecimento de Feira (CAF), nasceu com a cidade ou, melhor dizendo, a cidade nasceu dela, a partir da formação espontânea de um local de comercialização de mercadorias.
A feira livre teria assim surgido por volta de 1700, pouco depois, e tão valiosa quanto a venda de animais se tornou que atraiu a visita do Imperador Dom Pedro II em 1859. A importância e a resistência desse tipo de comércio milenar, desprovido de portas, prateleiras e balcões, trazido pelos europeus, é assunto para análise de sociólogos, pela sua indiscutível relevância, já que não se trata de coisa nossa e sim de um evento trazido pelos europeus. Em Feira de Santana, mesmo com a extinção radical da grande feira, o que se vê quase cinco décadas após, contrapondo aos modernos, grandiosos e luxuosos supermercados com ar-condicionado e muito mais, é o fortalecimento expressivo das feiras livres, como a mostrar que a implantação do CAF não significou a ‘extrema unção’ dessa histórica manifestação popular.
Para o professor universitário, poeta e escritor Raymundo Luiz Lopes, o fim da grande feira foi por conta de que “o pretenso milagre econômico dos anos 70, que valorizou excessivamente o moderno, em detrimento do antigo, possibilitaria a destruição de valores populares e da vida comunitária, firmando metas das classes dominantes”. Por tal motivo, observa: “A Princesa do Sertão teria que figurar no mapa ‘modernista’, e afinal, não foi por pretender uma cidade mais progressista que a dotaram de um malfadado centro industrial – o CIS, Centro Industrial do Subaé?”
Assim, “a feira livre estava condenada: uma estranha no contexto da ‘nova Feira’”, diz Raymundo Luiz Lopes em um louvável artigo, além de analisar as causas do desaparecimento da maior feira livre do país, inclusive pelo aspecto turístico, questionando: “Será que as fontes de turismo se reduzem aos shoppings perfumados, aos supermercados padronizados, às casas de espetáculos com os seus megashows e à micareta com seus estrondosos trios elétricos, tão iguais às das outras cidades, verdadeiros clones carnavalescos?”
Dentro desse raciocínio analítico, o professor Raymundo Lopes difere a permanente movimentação humana, comum nas feiras livres, ao ambiente climatizado dos supermercados: “tão monótonos, tudo tão arrumadinho em prateleiras, stands, onde se pega, ato contínuo, paga-se no caixa. Nada de conversa, bate-papo, não se pode parar por muito tempo em algum canto, olhares vivos e eletrônicos espionando… Nem pechincha, nem degustação, a ordem é não abrir a embalagem”.
Essa também é a visão de muitos, não só mais conservadores como também estereotipados no prazer de desfrutar de mais liberdade diante da rotina semanal em ambientes fechados, quase apenas em contato com máquinas, e presos aos celulares que dão plena visão do mundo, mas tornam estranhos os vizinhos mais próximos. De todo modo, mantendo o legado da sua origem, Feira de Santana, hoje metrópole que acelera os passos para chegar aos 700 mil habitantes – há quem diga que já chegou a isso –, preserva o cenário do corpo a corpo, do cavaquear, ou como se diz popularmente, do ‘‘converseiro’’, da pechinha, do “bom dia, comadre; bom dia, compadre”, da escolha do produto, do dedo de prosa sobre o futebol, sobre a novela, ou o casamento da vizinha, o escorregão, a pilhéria, uma boa risada, o canto destoado… Coisas do dia a dia alheias aos ambientes climatizados.
Por Zadir Marques Porto