Anos 50/60 do século passado a cidade tinha pouco mais de 60 mil habitantes – o município todo 141 mil moradores. Os costumes dos jovens eram outros. O futebol nos incontáveis campos de areia e empinar arraia eram as melhores formas de divertimento, mobilizando a garotada. Bom de bola e craque no jogo da arraia (pipa para alguns), o empresário Fernando Lopes Araújo olha para o céu e mergulha saudosamente no passado, no “tempo das arraias”.
O azul do céu límpido, desnuviado, era matizado pelas inúmeras pipas, ou arraias, de cores diferentes num incessante jogo, manipulado por mãos habilidosas, em alguns casos por garotos que procuravam apenas se divertir, em outros, por autênticos “cracks” empenhados na luta para “cortar” a arraia do adversário e eliminá-lo do espaço celeste. Algo semelhante a uma guerra aérea, onde dois aviões se defrontam e, naturalmente, cada um busca eliminar o oponente. Esse cenário aparentemente sonífero, e imaginário, existiu de fato!
Era o tempo das arraias ou de “empinar arraias”, que mobilizava a meninada principalmente no período agosto/setembro, quando as chuvas do inverno, que era rigoroso, davam lugar ao céu azul primaveril com fortes ventos que contribuíam para a elevação das pipas. Nas tardes de sábado e manhãs de domingo, o céu ganhava o colorido peculiar em vários pontos da cidade ainda desprovida de edificações mais altas, já que as casas eram majoritariamente térreas, com algumas poucas dotadas de piso superior. Além disso, não havia a imensidade de fios que hoje existe nos postes, apenas aqueles destinados a manter a rede elétrica.
O duelo no céu, produzido por alguns “pipeiros”, era marcado por grande expectativa entre a gurizada que, independente de assistir ao espetáculo, para assimilar as manobras, disparava na tentativa de recolher, como um verdadeiro troféu, uma pipa cortada na disputa. O vento forte geralmente levava-a para longe, o que dificultava o trabalho dos “garimpeiros” que suavam na correria, sem sucesso. Mas valia a pena!
A Rua Castro Alves, trecho entre a esquina com o ABC (Avenida Sampaio) e a Avenida Getúlio Vargas, era um dos mais importantes “points” dessa prática esportiva. Ali “cracks” como Biriba, Beto e Quincas exibiam suas habilidades, mas não comparáveis às de Capitão (Fernando Lopes Araújo), que fazia belos cortes para a alegria da gurizada. Ele lembra que seu falecido irmão era ótimo e havia outro crack: “Era Pepino, ele era muito bom mesmo, mas já era adulto, com mais de 22 anos, nós tínhamos entre 14 e 15 anos”, ressalta. Um adversário de respeito era o hoje jornalista Ciró (Cironaldo Santos), que morava na Rua do Sol (Rua J.J. Seabra). “A guerra aérea entre os dois era boa, mas ao Capitão ninguém resistia.”
Fernando Araújo, o “Capitão” – apelido de infância dado pelo tio Bertino Portugal, cujo motivo até hoje ninguém sabe – lembra um episódio curioso que envolveu o renomado narrador esportivo Itajay Pedra Branca. “Eu estava no campo da Vitória (hoje Praça Jackson do Amaury ou Praça do Caminhoneiro) e havia várias arraias no ar, quando surgiu um ‘cação’, que é uma arraia maior. Fiz o jogo para aproximar minha arraia e involuntariamente cortei o ‘cação’, que eu não sabia de quem era. Itajay veio reclamar e nunca mais falou comigo. E olhe que eu o admiro e sou seu ouvinte até hoje”, relata.
Capitão não apenas era um ás no jogo de arraias como na sua fabricação. Utilizava papel de seda, taliscas de cana (as mesmas usadas em balões e foguetes), algodão para a rabada (cauda da arraia). De formato retangular, em média 30 x 20 centímetros, a arraia dependia da chave, que tinha importância vital, inclusive podendo deixá-la na espécie “dançarina” (ficava bailando no ar). Bem construída, a pipa subia bem, podendo alcançar uma altura estimada em até 80 ou 100 metros. Para isso, era usado tubo de linha Zebra número 40 (fina, mas extremamente resistente). No caso de um “cação”, bem maior, era usada linha Zebra número 30, mais grossa.
O “cerol”, tempero aplicado na linha para cortar outra pipa, era cuidadosamente produzido com a utilização de vidro moído e cola de marceneiro. Capitão lembra que preparar tempero sempre lhe rendia reclamações de dona Zenaide Lopes Araújo. “Eu usava o batedor de tempero de minha mãe para moer vidro. Depois lavava muito bem lavado, mas mamãe tinha receio de ficar algum resíduo”, relembra. Caminhando para os 80 anos e diretamente voltado para a Pererê Peças, empresa da família, Fernando Araújo, o “Capitão”, hoje “Capita” – “estou perdendo a patente”, brinca – não esquece: “agosto e setembro, o tempo das arraias”. Lá se vão mais de 60 anos, quando a princesa ainda menina olhava para o céu e se divertia com as arraias!
Por Zadir Marques Porto